terça-feira, 25 de setembro de 2007

Contos - O Caixeiro-Viajante

O CAIXEIRO-VIAJANTE

Chegava sempre nas cidades do interior no último ônibus, como se fosse um ritual para um bom augúrio. Assim, Luiz Roberto não encontrava em sua chegada, o barulho da cidade, o vai-vem das pessoas. Poderia assim calmamente dirigir-se ao hotel e ser atendido com exclusividade. Também tinha o sol que incomodava sempre a sua vista.

Metódico, Luiz Roberto arrumava todos os seus pertences na gaveta, separando já à noite, a roupa para o dia seguinte. Feito isto, ajeitava com muito esmero sobre a cômoda, os volumes da bíblia especialmente impressos em Jerusalém.

Tomava um banho e rezava um terço ajoelhado à beira da cama, antes de dormir. Passava os olhos na lista de igrejas e casas de fiéis a visitar no dia seguinte e apagava as luzes.
Fazia sempre este ritual de chegada, toda vez que colocava os pés numa nova cidade. Tudo corria como sempre, sem surpresas e nem solavancos. Virou-se e remexeu-se entre os lençóis. Quando estava quase pegando no sono, eis que o nosso caixeiro escuta:

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Era uma voz zombeteira e brincalhona de uma criança. Luiz abriu os olhos e teve preguiça de investigar a voz. Pensou a si mesmo se não era fruto de sua imaginação. Acomoda-se na cama e tenta retomar o seu sono.

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Escutara novamente a voz zombeteira. Desta vez estava certo de que a voz não era fruto de sua imaginação. Sentou-se na cama e procurou pela origem da voz.

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Desta vez, tinha notado que a voz vinha pela janela. Levantou-se decidido da cama, acendeu as luzes e colocando um roupão, aproximou-se da janela.

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Abriu a janela num ímpeto. Olhou atenciosamente para a avenida. No outro lado da calçada, notou um vulto que se escondia entre os arbustos.

- Ei você aí!! – Gritou o caixeiro-viajante.

O vulto saiu do seu esconderijo e como se fixasse os seus olhos nos olhos de Luiz Roberto, parou por uns instantes debaixo da janela do hotel. O moleque deu umas piruetas e saiu correndo pela escuridão da avenida gritando:

- Vendedooor! Vendedooor! Vendedooor!

Luiz Roberto notou que o moleque zombeteiro estava somente de sunga. Sua cabeleira era vermelha, seu corpo cheio de pelos e os seus pés virados. Não sabendo como explicar a situação, principalmente para si mesmo, resolveu não compartilhar o incidente desta noite com ninguém.

Chamou o serviço do hotel e pediu um copo de leite quente. Enquanto esperava pelo leite, pensava consigo mesmo sobre o que dissera o estranho menino. Como ele sabia que a sua fé ultimamente andava abalada após o divórcio, que rezava o terço na esperança de recobrar a sua fé, mas que não rezava com fé.

Tomou o leite aos poucos e foi dormir com esses pensamentos na cabeça, que faziam remoer sentimentos no seu peito.

********

Acordara bem, como de costume. O vendedor de bíblias era aquela pessoa matinal, que acorda cantando alegremente com os pássaros. Pegou a lista das residências dos fiéis da cidade. Fez várias visitas pela manhã. Pela tarde resolvera alugar um automóvel para suas visitas no lado das montanhas da cidade.

Empunhando um mapa, seguiu por vias tortuosas, não asfaltadas. Visitou possíveis compradores que moravam em sítios e chácaras. Tinha se esquecido completamente do estranho incidente noturno com o moleque zombeteiro. Parou na frente de um portal de uma fazenda. Havia decidido que seria a última visita do dia, pois o céu já ameaçava escurecer.

- Muito obrigado pela compra, meu senhor, que Deus o abençoe. – Disse o vendedor de bíblias ao rancheiro.

- Tem certeza que não quer passar a noite aqui? Muita gente se perde nestas montanhas. – Oferece gentilmente o rancheiro.

- Obrigado meu senhor. Infelizmente não posso aceitar o seu convite. Tenho que devolver o carro alugado ainda hoje. – O caixeiro-viajante declina educadamente o convite do rancheiro.

- Siga em paz meu amigo! – Despede-se o rancheiro.

Luiz Roberto se aproxima do carro, despede-se pela última vez do rancheiro abanando a mão. Entra no carro e segue rumo à cidade. Já se podiam ver as primeiras estrelas no céu. O vendedor de bíblias decide acender os faróis do carro com a penumbra tomando conta da estrada.

No silêncio da estrada montanhosa, começa a lembrar do divórcio, de como mudara rapidamente de comportamento após a sua partida. Deixara de acreditar em Deus, na amizade, no amor. Nada mais tinha significado algum para Luiz Roberto. Os dias passavam, visitava as pessoas para a venda da bíblia, exaltando Deus, Jesus e Maria. Neste processo todo, citava com fervor as passagens bíblicas, mas não acreditava em nada que estava dizendo. Para quê? A sua melhor metade tinha partido, e nenhuma promessa celestial o fazia sentir melhor. Porém, não se achava um hipócrita, pois fora um processo natural de perda da amada, e tinha esperança velada de um dia recobrar a sua fé. Enquanto mastigava pensamentos, passava na sua memória, o absurdo evento noturno:

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Luiz Roberto freia abruptamente o carro no meio de uma abandonada estrada de terra na montanha. Desliga o motor e quebra em prantos, não aceitando mais a solidão, a necessidade de fingir em frente a todos os clientes que era a pessoa mais feliz do mundo, com uma profunda fé.
Luiz enxuga os olhos e resolve retomar a estrada. Gira a chave no contato, e para a sua surpresa e indignação, percebe que o motor nega-se a funcionar.

- O que faço eu agora no meio do nada!!

Tenta girar de novo a chave novamente. Após várias tentativas, resolve chamar por socorro pelo celular, mas descobre que está fora da área de cobertura.

Desce do carro, levanta o capô na esperança de encontrar uma simples avaria. Enquanto examinava a bateria do automóvel, escuta novamente a voz zombeteira:

- Vendedor de bíblias, não acredita no que vende!

Luiz Roberto olha para trás e encontra o mesmo menino peludo de cabeleira verde, agora bem próximo de si. Ao notar que fora avistado, o moleque zombeteiro começa a fugir, subindo morro acima.

- Espere menino! Como você sabe da minha fé? Não vou te machucar!!

Como se nada tivesse ouvido, o menino continua a subir o morro. Luiz Roberto vai ao percalço do garoto, deixando o carro com a porta aberta e o capô levantado. O caixeiro-viajante tem dificuldades de seguir o moleque, que ainda zombava:

- Vendedooor! Vendedooor! Vendedooor!

- Espere garoto, me diga como você sabe disto!

Correndo como o vento pela trilha iluminada pelo luar, o garoto levava uma grande vantagem sobre o vendedor de bíblias. Em contrapartida, Luiz Roberto com terno e sapato de couro, tropeça em todos obstáculos por sua frente.

O moleque segue até atingir uma clareira no topo do morro. Luiz Roberto percebe que o moleque parara de correr. Nota ele que está no topo de um morro com vista à região toda. Na clareira onde se encontrava o moleque o vendedor percebe uma enorme cruz.

Aproxima-se da clareira e não consegue mais avistar a estranha criatura. Senta-se no pedestal da cruz e resolve fumar um cigarro. A escuridão do local era amainada pelas estrelas do céu. Fumando e olhando para o chão, se maravilha com o clarão das estrelas. De repente o clarão das estrelas começa a se intensificar, ficando cada vez mais forte.

- Deve ser a lua. – Explica a si mesmo, o caixeiro-viajante.

Porém a luz se intensifica de forma a iluminar toda a cruz e o Luiz Roberto. Surge do nada então, um ser de luz. O vendedor vê atônito o ser de luz. Tenta fugir mas não consegue. O ser de luz se aproxima e diz:

- Então não acredita em mais nada...

- Como? Quem é você??

- Há pureza em seus sentimentos, Você não almeja nada, a não ser, ser uma boa pessoa.

- Quem é você?

- Sou aquela que mora no seu coração. Não chores mais, não sofras mais. Daqui para frente será tudo claro para você. Recobrará a sua fé.

Terminando a frase, o ser de luz emana uma luz violeta em direção do peito de Luiz Roberto, que começa a chorar de tristeza, e à medida que ele recebia a luz, o pranto se converte em lágrimas de felicidade.

De repente, enquanto acreditava estar recebendo a luz, Luiz Roberto percebe que está de volta ao volante do carro, seguindo estrada à frente, como se nunca tivesse descido do mesmo. Novamente, não sabia explicar o que tinha acontecido, e resolve guardar o incidente para si mesmo.

Chega à cidade, devolve o carro e volta para o hotel. Não sabe o que dizer às pessoas, não sabe o que sentir, mas sabe no fundo da sua alma, que a sua fé tinha sido recobrada. Feliz e confuso ao mesmo tempo, o caixeiro-viajante aceita o convite para se juntar à Ordem dos Franciscanos.

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