segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Nirvana - A Graça Perpétua 1/1

Nirvana - A Graça Perpétua

Foi em 1989 quando Lazlo retornou da Índia. Ele voltou sábio, diferente. Quase não podia reconhecer as transformações deste meu amigo. Era como se ele lesse a mente do seu interlocutor, percrustasse a alma das pessoas, dando conselhos e até avisos. Parecia poder ler o futuro próximo, entender a dor alheia, num gesto de compaixão somente visto entre os homens santos. Seus gestos se tornaram sutis e suas ações sincronizadas. Tudo o que queria acontecia, como se num passe de mágica.
Lembro que era uma noite de inverno, quando acendemos um incenso e ficamos conversando à meia luz, tomando um tchai indiano.

“Cheguei em Nova Delhi em fevereiro. Era a primeira vez que eu estava indo para a Índia. Como era uma viagem de negócios, nem tinha me interessado pelos aspectos místicos dela. Simplesmente estava preocupado com o trabalho do nosso escritório de engenharia...
“Somente tive um pouco de tempo de ler sobre o país no avião, quando notei que nos guias de turismo, muitos dos logradouros e de estabelecimentos tinham nome de santos e deuses hindus, tal como Krishna, Vishnu, Lakshmi e outros...”
“Fiquei impressionado com uma matéria num dos guias, sobre os templos do norte do sub-continente, ornados com imagens de deuses de vários braços, estátuas de animais sagrados e figuras eróticas. Enquanto pensava se haveria tempo para visitar estes templos exóticos, a pessoa ao lado me perguntou...”

“Está indo para a Índia? Me chamo Mehmet.” - Apresentou-se o meu vizinho.

“Prazer, Lazlo.” - Respondi. “Sim, é a primeira vez. Estou meio ansioso. E você, vai para a Índia também?

“Não, estou voltando para Somália, minha terra natal. Faço conexão em Nova Delhi. Passei dois anos no oriente com um bolsa de estudos do meu governo.” - Disse Mehmet.

“Já estive na Índia.” - Continuou Mehmet. “As pessoas são muito gentis, a comida é maravilhosa e as mulheres recatadas. Mas dizem que quem vai para a terra dos Deuses, sempre recebe uma graça, boa ou má. É a terra sagrada, onde se lava a alma. Se a graça for boa, diz-se que está colhendo as boas ações praticadas no passado. E sendo má, a graça vem para o bem, pois aquele que recebe está sendo purificado, para poder receber uma benção maior...”

“É, dizem que ela é mística mesmo” - retruquei, “mas eu estou indo a trabalho, tenho um contrato para a construção de uma hidrelétrica para amarrar, coisas do mundo dos negócios. Infelizmente não terei tempo para questões espirituais. Ademais, sou muito cético para estas coisas...”

“Lazlo você não entendeu” - continuou Mehmet, ”você não precisa buscar: a graça vem sozinha. Não se preocupe, isto não passa de um dito popular. Quem sabe encontre o que sempre procurou, quando menos esperar...”

“Engraçado” - disse, “você pensa como falava a minha avó, totalmente devota e sempre com frases misteriosas. Ela sempre me criticou por esta minha falta de interesse pela espiritualidade ou por duvidar da existência da providência divina. Quem sabe desta vez eu entenda o que ela sempre quis me dizer...”

“O que ela sempre quis te dizer?” - indagou Mehmet.

“Sempre quis me explicar de uma forma ou outra” - respondi, “ que existem forças além da nossa compreensão, e de que os fatos, os acontecimentos e os encontros, fazem parte de um esquema maior...”

“E você acredita?” - Insistiu Mehmet.

“Fui criado no leste europeu.” - Expliquei a Mehmet, “Toda a minha educação foi voltada para que eu não acreditasse em nada que não fosse concreto, material, científico.”

“Então, é até que provem o contrário. É assim que você pensa.” - Observou Mehmet.

“Digamos que sim. Mas a minha a casca é dura. Tem que ser muito convincente.” - Finalizei.

“Deixa eu te contar sobre uma experiência que eu tive no sul.” - Continuou Mehmet com brilho nos olhos. ”Foi num antigo templo de Shiva, em Tamil Nadu. Seguia-se o ritual de consacração do lingam, um objeto fálico adorado pelos hindus. De repente, enquanto o sacerdote entoava o cântico de adoração ao Shiva, senti como se meu coração explodisse de alegria incontida. Estava lá, feliz sem nenhum motivo. Naquela época, eu andava meio triste, pois o meu pai estava sofrendo de uma doença desconhecida, e esta alegria me ajudou a esquecer um pouco do problema. Eis que no dia seguinte telefono para casa, e fico sabendo que meu pai tinha se recuperado totalmente. Esta foi a graça que eu recebi da mãe Índia...”

“Fico contente que o seu pai melhorou.” - Disse. “Acho que necessitaria algo assim ou quiçá algo mais forte para começar a me entusiasmar sobre a sua face mística. Espero que a minha graça seja boa também.”

“Mas pensando bem,” - continuei, “esta minha ida já é uma graça. O contrato da hidrelétrica em Bombaim surgiu assim do nada.”

“Como assim?” - Perguntou Mehmet.

“Foi uma coincidência após outra. Sabe quando uma coisa leva a outra, como se num passe de mágica? Foi exatamente desta maneira.” - Respondi.

“Me explica.” - Indagou Mehmet intrigado.

“Conheci um indiano na Universidade.” - Comecei a explicar enquanto me ajeitava na poltrona. “Estudávamos juntos e nos tornamos grandes amigos. Se chamava Rajiv. Depois da graduação cada um foi para o seu lado, e perdemos o contato. Um dia eu estava arrumando fotos antigas no meu escritório, e encontro uma foto minha com Rajiv. A foto era de uma bebedeira inesquecível da época da faculdade. No dia seguinte, recebo um telefonema, e era o próprio Rajiv!”

“Puxa que coincidência.” - Disse Mehmet franzindo as sobrancelhas.

“Ele tinha me encontrado no diretório dos construtores. Por coincidência, ele estava na cidade procurando por escritórios de engenharia para a construção de uma hidrelétrica para o governo indiano. Digo coincidência pois a nossa firma é especializada neste tipo de projetos.” - Continuei.

“Relembramos os velhos tempos e depois falamos de negócios. Perguntou se nós não queríamos participar da licitação da hidrelétrica. Parecia tudo estar armado, pois o nosso escritório tinha acabado de terminar um projeto similar na China, satisfazendo assim todas as condições técnicas da obra. Vencemos a licitação, e aqui estou, rumo à Índia.” - Concluí.

“Pois é, parece que você já recebeu a graça.” - Avalizou Mehmet. ”E ainda não acredita na providência divina, após todas estas coincidências, de tão boas, que parecem ser mais do que coincidências.”

“Como disse anteriormente, sou cético. Mas deu para sentir que havia uma mãozinha dando uma ajuda.” - Assenti concordando comigo mesmo.

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“A porta do avião se abriu, e entrou aquele mormaço do verão indiano. Minhas narinas foram logo invadidas por um odor acre de caril indiano. Todas gentis, as aeromoças da Air India fizeram um namaskar, com ambas as mãos em forma de prece, e nos guiaram para o terminal de desembarque...”
“Me despedi de Mehmet que ainda prosseguiria a sua viagem, ficando no terminal de conexões...”

”Bom, vou lá receber a minha graça.” - Disse.

“Com certeza irá encontrá-la, e será uma boa graça.” - Respondeu Mehmet.

“Despedimo-nos e segui pelo longo corredor, atentando-me aos sinais do aeroporto. Passei pelo controle de passaportes e logo me vi dentro do terminal de passageiros do aeroporto.
“Foi quando dois guardas muito gentis se ofereceram a arranjar um transporte para mim...”

“Namaste! Saudações. Somos do grupo de boas-vindas do aeroporto internacional de Nova Delhi. Seja benvindo à Índia.” - Se aproximou sorridente um dos guardas.

“É a primeira vez na Índia? O senhor encontrará bastante folhetos úteis para sua estadia nesta cidade, no balcão de informações.“ - Continuou o outro guarda.

“Eu nem tive tempo de responder às gentilezas dos guardas. Quando percebi, um dos guardas já estava me ajudando com as minhas bagagens...”

“Obrigado, sim.” - Balbuciei. “Vou querer ver os panfletos. Obrigado pela ajuda. Estou precisando de um táxi agora.”

“Faz muito calor em Delhi. O senhor precisa sempre se hidratar, tomando bastante líquidos. Cuidado com a comida que é muito temperada, poderá assustar o seu estômago. Prazer, o meu nome é Sanjay. Este é o meu companheiro Sunil.- Se apresentou o primeiro guarda me estendendo a mão.

“Puxa sim, faz muito calor. Com certeza vou tomar cuidado. É muito longe o centro da cidade do aeroporto?” - Perguntei apertando automaticamente a mão de Sanjay.

“Chega-se num instante. O senhor é de que país?” - Perguntou-me Sanjay.

“Sou da Hungria. Mas eu venho de Tóquio, trabalho no Japão já faz muito tempo.” - Respondi.

“Hungria. Meu pai falava muito do Puskas, o grande jogador da copa de 54. O senhor gosta de futebol?” - Indagou Sunil.

“Sim, gosto muito. Puskas é da época do meu pai e do meu avô. Mas ainda é um herói nacional na Hungria” - Respondi.

“Ainda lembro das grandes jogadas de Puskas que o meu pai me descrevia quando era pequeno. Deve estar cansado, venha, vamos tomar um chá gelado. Cortesia do grupo de boas-vindas.” - Me ofereceu gentilmente Sunil.

“Sim. Muito obrigado. Preciso tomar alguma coisa mesmo. Puxa, então vocês conhecem o grande Puskas. Não sabia que aqui se apreciava o futebol.” - Disse espantado.

“É que o meu pai foi jogador da liga amadora de Delhi. Era um fanático pelo futebol. Venha, vamos tomar um chá gelado, e depois passaremos no balcão de informações para pegar os panfletos e lhe arranjaremos um táxi. É necessário tomar cuidado com os taxistas não credenciados. Eles cobram mais que o dobro dos turistas desavisados.” - Completou Sunil.

“Dei-lhes confiança e aceitei a gentileza. Nos aproximamos do balcão, e Sunil que não parava de falar, pediu chás gelados para a atendente.”

“Tome. É o melhor chá da Índia. É de Assam. Não é querida?” - Disse Sunil se voltando para a atendente. “Saúde para Puskas e o seu grande futebol!”

“Obrigado. Saúde para Índia. Vocês são muito gentis. - Respondi erguendo o copo suado.

“Tomei avidamente o chá, pois o calor da cidade estava realmente insuportável. Senti o frescor do chá amainando o calor. Mas de repente, enquanto notava que o chá estava meio amargo, tudo começou a girar e tomado por uma vontade incrível de dormir, fechei os olhos. A última imagem que eu me lembro, eram os rostos de Sanjay e Sunil, ambos com uma expressão leviana nos rostos...”
“Senti mãos nervosas remexendo meu corpo, enquanto eu via tudo escurecer, sendo aturdido pelo barulho ensurdecedor dos aviões decolando...”
“Quando abri os olhos estava deitado na calçada do lado de fora do aeroporto. A minha bagagem havia desaparecido e estava somente com a roupa do corpo e o passaporte, que estava escondido na barra da minha calça...”
“Estava tremendo e suando. Ainda atordoado, ensaiei alguns passos, mas não conseguia me mover. Deitei-me de novo e somente minutos mais tarde, reuni forças o suficiente para me levantar e procurar por ajuda...”
“Não sabia o que fazer. Estava com medo de ir à polícia para dar queixa, pois foram exatamente dois oficiais que tinham me oferecido o chá. Fiquei desesperado, sem saber o que fazer numa terra estrangeira, onde pela minha aparência de turista eu era um alvo fácil...”
“Simplesmente pensava se este era a graça que o Mehmet tinha me dito. Mas a situação era grave e não tinha tempo para considerações metafísicas...”
“Avistei um casal de ingleses que estavam entrando num táxi. Expliquei-lhes nervosamente a minha situação e se prontificaram a me levar à embaixada húngara...”
“Na embaixada, não consegui falar com Nadine, e nem com meu sócio. Entrei em desespero. A alternativa que eu tinha era de telefonar para você. Mas você tinha viajado para Tailândia e somente voltaria em um mês....”
“Eu ainda tinha que voar para Bombaim, mas todos os contatos estavam dentro da mala, e não conseguimos achar o nome do escritório de engenharia na lista telefônica...”

“Estou sem sorte. Não consigo falar com ninguém. É muito estranho.” - Disse nervosamente.

“O senhor tem certeza que discou o número correto?” - Perguntou o encarregado da embaixada ajustando os óculos.

“Tenho sim, atende a secretária eletrônica.” - Retruquei impacientemente.

“O senhor não é a primeira pessoa a cair na estória do grupo de boas-vindas. Pelo que me contam são muito simpáticos, e pelo fato de estarem uniformizados, os turistas acabam por aceitar o chá fatal.” - Explicou-me o encarregado.

“Sim, realmente são muito simpáticos. Jamais na vida eu iria suspeitar da atitude dos dois guardas.“ - Concordei reticentemente.

“O senhor tem idéia do que pretende fazer? - Perguntou o encarregado com um certo nervosismo.

“Minha esperança era de que entrando em contato com a minha mulher, ela pudesse me enviar dinheiro para poder ficar num hotel e retornar para casa.” - Expliquei num afã.

“Mas não está conseguindo entrar em contato.” - Insistiu o encarregado.

“Não.” - Respondi com certa bronca.

“Sinto muito lhe informar, mas a embaixada já está fechando, e o senhor não pode ficar aqui.” - Disse o encarregado olhando impacientemente para o relógio na parede.

“Mas será que não poderia ficar aqui, tentando fazer as ligações? Não poderia passar a noite na embaixada, ou a embaixada me emprestar algum dinheiro para que eu fique num hotel até que a situação se regularize?” - Reagi me defendendo.

“Não, a embaixada não possui recursos para este tipo de situações. Eu sei que é uma emergência, mas o senhor terá de arranjar um jeito sozinho.” -

“Mas eu sou um cidadão húngaro! É dever da embaixada proteger os seus cidadãos em apuros no exterior!”

“Calma senhor. Eu sei que a situação não é a mais confortável de todas. Estou limitado pelas condições da nossa embaixada. Nunca tivemos um caso como o do senhor. Já tinha escutado casos similares ao do senhor, mas isto acontecendo com cidadãos britânicos ou japoneses.”

“Pois tem um caso húngaro agora. Você quer que eu vá para a embaixada inglesa para que me dêem um jeito, já que a embaixada do meu próprio país não pode me ajudar?”

“Tente mais uma vez o telefone. Continue tentando. Talvez tenha sorte desta vez. Enquanto isto vou pensando numa idéia para a sua situação.”

“Fui novamente telefonar.”

“Senhor Lazlo. Creio ter uma solução paliativa até que consiga falar com a sua esposa em Tóquio.”

“Qual seria?” - Indaguei curioso.

“Há um mosteiro nos subúrbios de Nova Delhi, que em troca de trabalho, generosamente abriga os viajantes.”

“Essa é boa, agora tenho que trabalhar num mosteiro. Que tipo de trabalho?”

Não sei senhor Lazlo. Trabalhos práticos creio. O senhor aceita?
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“Fui recebido por um sacerdote no mosteiro. Ele tinha a cabeça raspada, alto e magro, falando sempre em voz baixa. Contei-lhe a minha história, e para a minha surpresa disse-me o seguinte...”

“Todos que vêm ao mosteiro, têm um propósito e uma finalidade. Alguns vêm por conta própria, deixando todos os seus pertences materiais para trás. Alguns, são trazidos quase que à força, contra a sua própria vontade, como é o seu caso.

“Caro Lazlo. A minha preocupação é com o seu bem-estar espiritual, e não o material. Lá fora, vocês podem ser ricos e poderosos, opulentos e soberbos, ou mesmo pobres e humildes. Para mim não importa a condição da pessoa, mas sim o seu desenvolvimento enquanto alma.

“Todos são parte da consciência universal, todos parte de nossas próprias essências. O que está em você está em mim. Todos somos centelhas de uma mesma consciência lutando para acordar, para entender que nós somos o próprio universo. O universo sou eu, e o universo é você. As nossas almas são como chamas em diferentes velas. As velas, sendo os corpos, são diferentes. Mas a chama da consciência é igual para todas as velas.

“Independentemente da duração da sua estadia, aproveite ao máximo para se consagrar um pouco à sua vida espiritual. O desapego se aprende de diversas formas, e para aqueles que não estão preparados, o acaso proporciona artimanhas que somente com o passar do tempo poderá entender.

“Foram tirados bens da sua vida, mas não a sua vida. E veja bem, você existe sem eles, você está bem aqui na minha frente, sem o seu trabalho, sem o seu dinheiro, sem o seu elo com a sociedade. Aqui você aprende a se confrontar consigo mesmo.

“A sua estadia no mosteiro lhe servirá como um tempo para reflexão sobre os seus bens materiais e a sua própria vida. Quando fizer a última renúncia, estará pronto para entender o que é o desapego. Você deve estar cansado, benvindo ao Ashram.”

"E qual seria a última renúncia?"

"O asceta renuncia os seus bens materiais, o dinheiro, o prazer, renuncia os seus apegos... Mas acaba por apegar-se pela própria renúncia, vicia-se em renunciar de tudo. Pois bem, a última renúncia, é renunciar a própria renúncia..."

*******

“Eu ainda estava pensando nos contratos que tinha que fechar , que teria de encontrar um jeito de acessar a minha conta bancária em Tóquio, em Nadine que tinha brigado comigo na partida, se eu tinha enviado aquele ofício para Hong Kong, o que eu faria com a minha roupa, por quanto tempo eu teria que ficar no mosteiro. Esses e outros pensamentos fluíam rapidamente na minha cabeça enquanto cumprimentava o sacerdote que estava me dando as boas vindas...”
“Me levaram para o quarto que eu iria dividir com mais umas quinze pessoas. Trouxeram toalhas limpas e uma roupa indiana para me trocar. Necessitava tomar um banho e fiquei mais de meia hora sentindo o jato de água que batia no meu rosto, enquanto tentava recompor minhas idéias. Tudo passava na minha tela mental em forma de imagens, e sobretudo o sorriso confortador do sacerdote que nem tinha perguntado o seu nome...”
“Enxuguei-me e coloquei as roupas indianas, e somente então percebi as melodias de um rádio ligado no canto do quarto. Deitei no beliche e quando finalmente estava começando a aceitar tudo que estava acontecendo, me lembrei da frase que o sacerdote tinha me dito...”

“Quando fizer a última renúncia, estará pronto para entender o que é o desapego.”

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“O mosteiro era enorme, nos subúrbios de Nova Delhi, longe de toda miséria que aflige os centros urbanos indianos. Os dormitórios eram separados para homens e mulheres. No meio do mosteiro, havia um vasto jardim com imagens de divindades...”
“Eu ainda estava com Nadine na cabeça. Fiquei horas com a operadora do mosteiro tentando falar com ela em vão, pois todas as linhas para o exterior estavam cortadas devido a insurgentes muçulmanos nas proximidades da cidade de Nova Delhi...”
“Expliquei para o sacerdote, que se chamava Ashutosh, o gentil, que era necessário entrar em contato com Tóquio o mais rápido possível. Mas ele parecia não se preocupar com a minha pressa, e me acalmou dizendo...”

“Parece que Alguém lá em cima, quer que pense somente em você neste momento. Um momento de reflexão. Te tirou todos os laços terrenos e cortou também a comunicação com a sua vida cotidiana. Aproveite a sua estadia no ashram para estudar a nossa filosofia e aprender sempre a estar com a mente estável, por mais que sejam tempestuosas as circunstâncias!”

“É verdade. Com certeza a ansiedade tomou conta de mim. Uma mistura de medo e receio do que poderá acontecer, ou do que já aconteceu, está me impedindo de olhar os acontecimentos com frieza, sacerdote Ashutosh.”

“Não se preocupe meu caro Lazlo. Vejo que você é um bom rapaz. Por mais que você pense que está em apuros, nós da congregação lhe daremos todo o apoio espiritual e material possível. Venha falar comigo caso se encontre muito aflito. Somente não fique isolado.”

“Obrigado sacerdote. Isto me conforta muito. Eu poderia estar numa situação pior, caso não fosse a sua hospitalidade para um estranho completo.”

“O nosso mosteiro recebe pessoas em qualquer condição, seja qual for a sua nacionalidade, credo ou condição. Seguimos os ensinamentos de amor e fraternidade da nossa ordem. Mas lembre-se. Mantenha sempre a sua mente estável, aprenda um pouco de Yoga, distráia-se um pouco até que resolva sua situação.

“Vou seguir os seus conselhos, senhor.

“Talvez Alguém lá em cima que te quer bem, ou o acaso como você preferir, está lhe oferecendo uma oportunidade ímpar de estar na casa onde todos buscam a verdade.

“As palavras do sacerdote Ashutosh tiveram um efeito positivo em mim. Resolvi esquecer o mundo lá fora, até que as linhas internacionais fossem restabelecidas...”
“Passei dois dias descansando e lendo livros da filosofia do mosteiro. Até então, as linhas internacionais não haviam sido restabelecidas. No terceiro dia, o encarregado de serviços me colocou para trabalhar como assistente na cozinha...”
“Passei a freqüentar as sessões de meditação, todas as tardes, após o serviço na cozinha. Eu sempre acabava dormindo em posição de meditação, pois me faziam lavar muitas panelas após o almoço...”
“Antes de cada sessão de meditação, o sacerdote Ashutosh sempre falava alguma coisa para ajudar na meditação:”

”Observem as suas mentes durante a meditação. Acalmem todos os pensamentos. No início é normal que vários pensamentos flutuem como nuvens ou vana pelas suas mentes. Nirvana, é não ter nuvens na mente, sem pensamento, mas somente o ato da observação da alma.

“Por exemplo, quando admiram uma flor bonita, vocês se lembram dos seus próprios nomes? Vocês ficam pensando sobre o tempo? Vocês são exatamente essa sensação de beleza ao apreciar a flor. O que nunca muda em vocês, é o fato de serem um observador, a alma que observa as intempéries da mente. O que leva o ser humano à dor, é essa identificação errônea com a mente, que quer tomar o lugar da alma, o ego...

“A mente não só traz à alma observadora pensamentos, mas também ações no mundo exterior, arquitetando situações agradáveis ou desagradáveis para a pessoa.

“Após vários anos da prática da meditação, aprenderão a limpar a mente. Isto é, quando os pensamentos não mais lhe atrapalharem durante a meditação. Num momento calmo e sereno, observem que a mente gira em sentido horário para os homens e no sentido anti-horário para as mulheres...

“Observem a mente girar. O seu ‘eu’ verdadeiro, é aquele que está a observar a mente a girar. Concentrem-se então no ato da observação, o seu ‘Eu’ milenar que já reencarnou várias vezes...

“Neste momento, olhem para dentro, no fundo da sua alma, numa introspecção, onde reside a sabedoria absoluta. Agora meditem.”

“Minhas pernas doíam sempre, e estava sempre a movimentar o meu corpo, e parecia uma eternidade passar uma hora meditando...”
“Até que um dia entrei num estado intermediário entre a vigília e o sono, num equilíbrio muito sensível. Saí meio tonto, e assim que eu saí da sala de meditação, o sacerdote Ashutosh me deu um doce dizendo que precisava recuperar as energias perdidas durante a meditação...”

********

“Passavam-se os dias, e eu ainda não conseguia falar com Tóquio. Foi quando resolvi ir até o centro de Nova Delhi, aproveitando que o chefe do ambulatório do mosteiro, o doutor Narayan, estava indo até o hospital central para reaprovisionar o estoque...”
“Era um daqueles carros modelo dos anos quarenta, porém recém-produzido. Sem pressa nenhuma o doutor Narayan foi conduzindo o carro indiano por estradas esburacadas e cheias de fumaça de óleo diesel...”
“Sabe aquela falta de pressa que incomoda quem vem de cidade grande? Tinha acabado de sair de Tóquio, onde todo minuto é importante...”
“Mas como ficar nervoso, se o doutor Narayan, todo sorridente, parecia ter o tempo todo do universo...”

“Você parece estar com pressa. Até entendo. Me contaram o que aconteceu com você lá em Delhi. As coisas aqui na Índia são diferentes do Japão, Estados Unidos ou Europa. Lá as pessoas estão sempre com pressa. Eu vejo pelas pessoas que se hospedam no ashram. Boas praças, mas sempre com pressa...”

“Mas o importante é a relação humana, onde a pressa, não é o fator fundamental. O tempo humano, é diferente do tempo do trabalho. Na Índia não temos a riqueza dos países avançados, mas vive-se intensamente o que é da alma, se preocupamos com o sentimento alheio, como se fosse o nosso...”

“Parecia que todo mundo queria me dar um conselho de vida na Índia, desde o momento que eu cheguei. Mas nada de conselhos práticos, ou seja, talvez estivesse sendo muito pragmático com a minha própria vida. Apesar da minha relutância, estava diante da oportunidade de rever certos conceito fundamentais de vida...”
“Chegamos na central telefônica de Nova Delhi. Paramos o carro e passando por vários pedintes de rua, entramos no edifício...”
“As linhas internacionais tinham sido restabelecidas, mas não consegui falar com Nadine e nem com meu sócio. Consegui pelo menos entrar em contato com a secretária da empresa, que por sorte, apesar do horário, ainda estava no escritório...”

“Sr. Lazlo? Puxa, finalmente conseguimos entrar em contato com o senhor.

“Como vai senhora Takada. Como vão as coisas por aí?

“Entendo que as coisas tenham sido difíceis aí na Índia, mas aqui, a coisa ficou feia.”

“Como assim?”

“Como o contrato da hidrelétrica com a Índia não foi firmado, os investidores ficaram sem confiança e começaram a vender todas as ações da empresa.”

“Não diga. Não estou acreditando. Estamos falidos?”

“Virtualmente falidos. O seu sócio e a sua esposa honraram os compromissos, utilizando todos os recursos disponíveis, inclusive da sua conta pessoal.”

“E Nadine e meu sócio?”

“Eu não sei como comunicar para o senhor, mas digo, vou ser direta.”

“Sim, conte-me o que aconteceu. Sabe de alguma coisa? Não consigo entrar em contato com eles.”

“Senhor Lazlo, o seu sócio e a sua esposa Nadine desapareceram e não sabemos o paradeiro dos dois...”

“Voltei para o carro perplexo, sem dirigir nenhuma palavra ao doutor Narayan. Minha cabeça estava a mil, desconfiando o que poderia estar passando com meu sócio e Nadine, a falência da empresa, e a sensação de que a minha estadia na Índia seria muito mais longa do que eu esperava...”
“Um sentimento de revolta tomou conta de mim, uma sensação de que alguma forma tudo tinha sido arquitetado por alguém, descartando toda a possibilidade do que o sacerdote Ashutosh chamava de obra do acaso...”

********

“Passei virtualmente duas semanas no mosteiro sem saber o que fazer, somente trabalhando para esquecer do acontecido...”
“Foi quando após extensas conversas com o sacerdote Ashutosh, resolvi me envolver totalmente com as atividades do ashram, esquecendo por um tempo a minha vida no Japão...”
“Claramente, eu não tinha escolhas. Comecei também a freqüentar as sessões de cantos e as cerimônias de oferendas para as imagens do mosteiro...”
“Pela manhã preparávamos guirlandas de jasmim. As colocávamos nas imagens espalhadas pelo mosteiro, junto com incensos e pequenas orações...”
“Para mim, que estava aturdido com os acontecimentos recentes, era uma hora pela manhã em que se esquecia de tudo,...”
“Comecei a aprender o sânscrito e um pouco de hindi. Em algumas semanas, já conseguia seguir os cantos lendo o hinário em alfabeto devanagari...”
“Quando me familiarizei com os temas do mosteiro, comecei a servir de intérprete para os poucos japoneses que moravam no ashram, durante os saraus...”
“Na cozinha, aprendi a lidar com as mil especiarias que levaram os portugueses a cruzarem o Cabo da Boa Esperança, quinhentos anos atrás...”

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“Participava da vida da comunidade com uma certa distância, pois não estava lá por vontade própria. Os regulamentos de conduta do mosteiro me incomodavam um pouco. Não beber, não fumar, não olhar para as pessoas do sexo oposto com desejo, não falar coisas mundanas, não comer carne, acordar e dormir cedo...”
“Eu achava ridículo esta estória de ficar venerando as divindades, que tudo era a vontade de Deus, de que tudo já estava predestinado pelo Ser superior...”
“Mas esta não era a compreensão da maioria dos membros da comunidade. Para eles existiam sim os Deuses, e que estaríamos sempre vivendo os seus desejos...”
“Eu achava que estava no meio de uma comunidade de fanáticos adoradores de divindades. O que mais me deixava aturdido, era o fato de não poder conversar com ninguém sobre a minha situação, de forma objetiva, sem entrar naquela explicação de que tudo era a obra do acaso e do karma...”
“Invariavelmente, era na maioria pessoas que tinham tido algum tipo de desgosto nas suas vidas, e resolveram se retirar do mundo. Somente alguns, pareciam realmente buscar algo...”
“Mas eu não tinha nenhum motivo para me retirar do mundo e não estava em busca de nada. Apenas me sentia prisioneiro das circunstâncias...”

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“Encontrava na figura do sacerdote Ashutosh, uma espécie de porto seguro emocional. Compartilhava com ele as minhas preocupações e ansiedades, do fato de se sentir um náufrago, da impressão de estar perdendo o tempo...”

“Vejo que você está acostumado a ter tudo sobre o controle. Isto não passa de uma ilusão. Na filosofia indiana, seja budista ou hinduísta, o mundo é uma mera ilusão, Samsara. O fato de nascer e de morrer já constitui uma ilusão. As ondas de Maya, a Deusa da matéria e da ilusão, movem a realidade, como uma dança universal...

“Toda ação, faz parte desta dança. Ninguém tem o controle de nada. Estão todos somente seguindo os compassos da Deusa Maya. A natureza tem um fluxo e um caminho próprios, como dizem os sábios chineses taoístas...

“A dança universal proporciona à alma que nasceu, uma mente para vivenciar os seus fluxos. Esta mente crê que tem o controle sobre os movimentos do mundo ilusório, enquanto na verdade, controlando ou não controlando, está somente seguindo os compassos da dança...

“A alma então tem a experiência de cada momento, intercalando sofrimento e prazeres. O objetivo das atividades do ashram é treinar a mente para que ela não oscile entre os extremos do prazer e da dor. Para isto existe o Dharma, a Ética, um caminho para a mente trilhar o mundo de Maya consumando a liberação da alma...

“Quando não for possível controlar as circunstâncias, controle-se a si mesmo, para não se machucar mais ainda. Afinal das contas, tudo está fora de controle, já pelo fato de ter nascido. Aprenda a fluir nas ondas da Deusa Maya. Ela é uma grande escola. É para isso que nascemos...

”É como se fosse um jogo de xadrez. As peças não arquitetam os seus movimentos, mas há uma consciência superior tramando as jogadas. No jogo da consciência, nós que somos as peças, pensamos arquitetar e tramar com as nossas vidas, ações, falas e intenções...

“Mas a mente não é o jogador. A mente é a peça de xadrez. O verdadeiro jogador é a alma, que tem a mente como um instrumento para sentir o mundo. A dor se instaura, quando o indivíduo esquece que é alma, pensando somente ser mente. Daí nasce o ego, mahankara, preso a considerações e interesses materiais, mesquinho, incapaz de compartilhar o amor com as pessoas...

“A alma é a nossa conexão com o universo maior, enquanto a mente é somente uma ligação com o mundo comum. Por isso, enquanto viver neste plano de existência, nesta escola de almas, é necessário aproveitar a qualidade tanto da alma como da mente, trilhando o caminho do meio. A alma não faz o que a mente faz, e a mente não entende o que a alma é capaz...

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