terça-feira, 25 de setembro de 2007

Contos - O Presidente Oculto

O PRESIDENTE OCULTO

Gilberto acordara sem voz. O grande Gilberto Amarante, o locutor da Rádio Nacional. Como assim sem voz? A sua voz era mais que a sua personalidade, era o seu cartão de visitas. Tentou ensaiar as vogais, os dissílabos, as onomatopéias, mas nada. Tudo em vão. Nada saía da sua garganta.

Foi ao banheiro se olhar no espelho. Quem sabe vendo o próprio rosto fosse mais fácil vocalizar alguma coisa. Fez caretas e revirou os olhos. Nada saía, nem mesmo um grunhido.
Toca o telefone. Gilberto atende mas nada consegue falar ao bocal.

- Amarante cadê você? A gravação já começou!– Era o produtor da rádio.

No outro lado da linha, Gilberto tenta se expressar, mas não consegue nada falar. Furioso, acaba batendo o telefone no gancho.
O mundo desabara para Gilberto. Não era somente a voz que estava perdendo, ele estava perdendo a sua legião de admiradores, o seu prestígio como a voz de ouro, o seu orgulho implacável de ser um astro.

De um dia para outro, Gilberto se torna um João-ninguém. Ninguém para cumprimentá-lo pelo trabalho bem feito, não mais cartas e flores de suas admiradoras.
Gilberto procurou ajuda médica. Passou por todos os especialistas do país. Nenhum deles podia fazer nada por ele. Recomendaram uma operação muito cara em Budapeste, com um dos cirurgiões mais respeitados do mundo. Gilberto não tinha dinheiro para pagar a passagem e muito menos para pagar a milionária operação.

Passaram-se os meses e Gilberto ainda não tinha reencontrado a sua voz. Durante este tempo, Gilberto passara a fazer parte da redação, escrevendo pauta para outros locutores anunciarem. Já não mais anunciava os grandes acontecimentos da nação, a última novidade que iria mudar para sempre o país. Tornara-se um simples redator, trabalhando em segunda linha, para que outras vozes galgassem ao estrelato.

Ser um redator. Justamente um trabalho que ele mais desprezava. Um trabalho de retaguarda. Ele sempre desprezou o pessoal que o apoiava no trabalho. Ser redator era trabalhar longe dos holofotes, da atenção do público em geral.

O anonimato. Gilberto não suportava o anonimato. Tinha que recuperar a sua voz e a sua fama de qualquer maneira.

Neste então, Gilberto começara a nutrir uma inveja latente em relação a Reinaldo que tomara o seu lugar. Ele não suportava mais ver Reinaldo Soares, a nova voz de ouro da Rádio Nacional.
Tamanha era a inveja, que Gilberto resolveu um dia pregar uma peça em Reinaldo. Redigiu uma pauta manchando a honra da mulher do prefeito. Sem assinar a pauta, colocou-a entre as folhas da locução de Reinaldo quando ninguém estava vendo, e esperou pelo jornal do meio-dia.

“Extra, extra! Maputo, Moçambique urgente! Caso extra-conjugal da esposa do prefeito de Maputo, Anselmo Dias, abala alianças políticas. A esposa do prefeito foi vista saindo de um hotel com o oponente político de Anselmo.”

O estrago estava feito. Ninguém assinara a pauta, ninguém saberia de quem fora a autoria. Reinaldo teria muito a explicar para o prefeito.

Para a surpresa de Gilberto, as edições vespertinas dos jornais estampavam em primeira capa, a foto da mulher do prefeito com o oponente político, e matérias com profusão de detalhes tórridos.

Os jornais da manhã seguinte confirmaram a notícias, divulgando as últimas novidades que comprometiam ainda mais a mulher do prefeito. Gilberto achou tudo isto muito estranho. Sem querer ele tinha descoberto sobre o caso da mulher do prefeito.

Na dúvida, Gilberto resolve testar as suas novas habilidades. Faz mais uma pauta sem assinar e esperou pelo resultado. Escreve que as ações da Refinaria Nacional despencariam de vez.
Espera ansioso o noticiário do meio-dia e os jornais do dia seguinte. Todos os jornais anunciavam o fechamento da Refinaria Nacional em primeira página.

O que teria acontecido com Gilberto? Perdera a voz mas ganhara a habilidade de mudar os acontecimentos da nação? Melhor que anunciar os rumos da nação, ele se tornara o presidente oculto do País? Passa a criar então, pautas destruindo os inimigos e outras favorecendo os seus pares. Cria indústrias, esmaga setores, leva ao estrelato certos artistas, faz surgir novos partidos políticos. Influencia até nos resultados do campeonato nacional de futebol. Tudo que escrevia Gilberto, acontecia no dia seguinte.

Um dia no seu apartamento, enquanto treinava a sua voz que já esboçava uma pequena melhora da afonia completa, dois homens de feições sérias batem à porta.

- Sim o que desejam? - Diz Gilberto ainda com uma voz rouca.

- Somos do serviço secreto. Gostaríamos de conversar com o senhor.

Pronto! Descobriram tudo! - pensou Gilberto. Ele seria preso por ter desfavorecido os seus inimigos, por ter levado uns à riqueza e a outros a morarem debaixo da ponte.

- Sim, no que posso ajudá-los?

- Podemos entrar?

- Sim, por favor.

- O senhor é o Gilberto Amarante Custódio Filho, ex-locutor da Rádio Nacional?

- Sim, sou eu. Hoje sou redator da rádio.

- Temos suspeitas que o senhor dissemina informações fictícias que acabam por se tornar realidade.

- Como?

- Não se faça de rogado. Diga-nos a verdade. A Rádio Nacional é sempre a primeira a divulgar a notícia. Os seus companheiros atribuem as pautas ao senhor.

- Eu posso explicar tudo.

- Pois bem, há muito a ser explicado. Muitas pessoas foram prejudicadas.

- Começou como uma brincadeira, eu só queria manchar o nome de Reinaldo Soares que ficou no meu lugar como locutor. Eu ia inventando as notícias e elas iam acontecendo. O que vai acontecer comigo? Vou ser preso?

- Depende do senhor. Nada lhe irá acontecer em caso de cooperação. O governo não pretende lhe fazer nenhum mal, porém, necessita de sua ajuda.

- Cooperação?

- Sim. O governo gostaria que o senhor ajudasse na reeleição. O senhor será recompensado por isto.

Gilberto não sabia que em concordando a ajudar a presidência, acabaria por implementar uma ditadura no poder do País. Por decisão do governo, Gilberto era obrigado a escrever pautas esmagando a oposição e a classe intelectual do País. Num segundo momento, acabou por massacrar a classe sindical e as oligarquias oponentes. Ele não tinha como voltar atrás, era lhe dado a ordem, e a ordem era cumprida.

Fazia as pautas meio sem vontade, mas a recompensa financeira o motivava de uma certa forma. Em pouco tempo, Gilberto tinha em sua conta bancária, o suficiente para pagar as despesas de viagem para Budapeste e realizar a caríssima operação nas cordas vocais.

Durante a viagem, Gilberto continuava enviando as pautas de Budapeste para a Rádio Nacional. Duas semanas após a operação, Gilberto sentia uma melhora considerável em sua voz. Na quarta semana, já falava com o mesmo tom de voz quando era locutor da Rádio Nacional. Nesta mesma semana, passara em testes de locução. A sua glória estava prestes a ser recuperada. Gilberto sentaria novamente em frente ao microfone.

Mas o mesmo não se podia dizer sobre as suas pautas. As suas notícias não mais se tornavam verdades. Gilberto recebia as ordens da presidência, mas era incapaz de cumpri-las.

A polícia secreta voltara a procurá-lo, tirando-o do cargo. O País se tornara um caos sem a presidência oculta de Gilberto. O governo autoritário que ele ajudara a eleger acaba por enviá-lo em exílio em Lisboa por tempo indeterminado.

Acontecem atentados em Madri, Londres e Roma, Todos eles anunciados previamente por um jornal árabe. O serviço secreto não consegue mais encontrar Gilberto em Lisboa, mas suspeita que o mesmo tenha perdido a voz pelo peso do exílio e recuperado as suas habilidades de fazerem os fatos acontecerem.

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