quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Contos - Transplante de Memória (Completo)

TRANSPLANTE DE MEMÓRIA

Mary Higgins foi admitida no Baylor University Medical Center em Dallas, às 23:40. O coração para transplante chegara ao hospital de helicóptero de um subúrbio de Dallas, quinze minutos antes da chegada de Mary. Era uma quarta-feira tempestuosa, e os médicos do Baylor University Medical Center efetuaram o transplante sob a eminência de um corte de luz. Na fase final do transplante, tiveram que operar apenas com os geradores de emergência.

A paciente se recupera de uma forma extraordinária e recebe alta em duas semanas. Apesar da rejeição ao novo órgão ter sido mínima, Mary se incomoda com o fato de estar vivendo com um coração alheio. Ela se sente que está tomando a vida de alguém que poderia estar vivo hoje no lugar dela. Passa muito tempo a choramingar a dor da pessoa sacrificada para dar a preciosa vida à Mary.

Feito os exames de rotina, os médicos do centro dizem a Mary que o transplante foi um grande êxito e que não poderia haver um prognóstico melhor. Ela confidencia aos médicos sobre a sua dor na consciência de carregar no peito um órgão de uma outra pessoa. Os médicos recomendam-lhe acompanhamento psicológico especializado em transplantes.

Passa o mês inteiro em tratamento com o Dr. Rudolph Grass e percebe que o doador do órgão não tinha como escapar da morte. Sente que seria de sua responsabilidade seguir a sua vida de forma digna, em honra ao doador do órgão. O austero Dr. Rudolph sabe da identidade do doador, mas revela somente detalhes significantes a Mary.

No mês seguinte, com o emocional estabilizado, ela retoma as atividades de ensino no centro educacional de Dallas. Hoje é o primeiro dia de aula após a cirurgia para Mary. Ela acorda com uma leve dor no peito e uma certa indisposição. Diz a si mesma estar em pazes com o assunto do transplante em frente ao espelho do banheiro. Faz a sua toalete e arruma os seus cabelos. Sente-se melhor.

Mira-se atentamente ao espelho e tem a estranha vontade de cortar os seus longos cabelos de que tanto tem orgulho. Na hora de se vestir, sente que gostaria de retomar as aulas com uma roupa mais masculina, evitando saias. Abre o armário e escolhe um jeans e uma camisa azul escura. Resolve não usar os brincos e nem o colar. Sente que quer estar o mais simples possível.

Chega à garagem e acha que há algo de errado com o seu conversível vermelho. Acha que deveria andar com o automóvel num tom azul, verde ou mesmo prateado. Estranha-se a si mesma por estar reconsiderando o seu modo de vestir e o gosto das cores.

Tira o carro da garagem e segue ao centro educacional. Liga o rádio, e sente a vontade de escutar algo com toque latino. Sintoniza numa estação latina. O ritmo com mescla de hip-hop e reggaetón em estilo latino toma conta do carro e Mary sente vontade de dançar. No cruzamento de Ross Avenue com Pearl Street, ela leva uma fechada de um automóvel. Mary abre a janela e grita em plenos pulmões:

- A la mierda coño!

Ela fica estarrecida com o que acabara de dizer. Mary sempre recatada, era uma pessoa que evitava o uso de palavras vulgares. Sempre calma e controlada, de repente se via perdendo os nervos de forma indecorosa e blasfemando em espanhol. Em espanhol? Ela mal sabia falar “Muchas gracias señor” e o que dissera ao outro motorista fora uma frase muito mais complexa.

Chegando ao centro educacional, abruptamente abre a porta da sala de aula e joga os livros sobre a mesa. Algo está errado, sente Mary. Sempre fora uma pessoa delicada e de gestos e maneiras suaves.

Para o seu espanto, ao chamar a atenção de um aluno durante a aula, utiliza a palavra “coño”. Mary não entende porque está tão vulgar assim, e ainda mais em espanhol.

Pela tarde, não se sentindo à vontade pela agressividade de sua personalidade, resolve pedir licença à diretora e retorna a casa. Enquanto dirige, ela passa a ter uma vontade incrível de comprar cerveja, pipoca e amendoim. Passa numa loja de conveniências e como num impulso, compra as cervejas e mais outros salgadinhos para acompanhar. Na saída, no caixa, acaba por pedir sem querer um maço de cigarros. Tenta cancelar a compra do cigarro, mas já era tarde, pois o caixa já tinha registrado a compra.

Meio contrariada pelas compras que fizera de forma impulsiva, primeiro pessoalmente por não tomar bebidas alcoólicas e nem fumar, e segundo pela proibição dos médicos quanto ao fumo e ao álcool. Sem nada entender, dirige para casa ponderando sobre o seu comportamento nas últimas horas.

A sua primeira reação ao chegar a casa, é de jogar fora as bebidas e o cigarro, mas não consegue. Ela resolve se descontrair sentando se frente à TV, passando de canal em canal com o controle remoto. Ao passar pelos canais, se interessa pelo jogo de Dallas Cowboys. Acha estranha a si mesma, pois nunca se interessara pelo esporte.

Passam-se os minutos e Mary se encontra fumando, bebendo cerveja, petiscando os salgadinhos e se comportando como uma verdadeira torcedora de Dallas Cowboys. Quando percebe o que está fazendo, Mary imediatamente apaga o cigarro e derrama a cerveja na pia.

Ela fica desorientada, confusa, pois fizera coisas que os médicos a tinham proibido. Liga aos prantos para o Dr. Rudolph, explicando o seu comportamento durante o dia inteiro.

- Controle-se senhorita Higgins. Hoje foi o seu primeiro dia de aula, e certamente este fato mexeu com as suas emoções. Eu tenho hora disponível agora à tarde. Porque não passa por aqui e me conta em detalhes o seu dia?

*****

- Sabe o que há de pior em tudo isto doutor? Eu sinto vida, alegria quando fumo, tomo cerveja e falo obscenidades em espanhol. Passei a tarde toda falando asneiras nesta língua, enquanto assistia a uma partida do Dallas Cowboys, como uma verdadeira aficionada! E eu não parava de me preocupar por uma criança. Parecia que se chamava Desirée.

- A senhorita disse falando asneiras em espanhol? E preocupada com uma criança? - Indaga Dr. Rudolph num tom sério.

- Sim. E eu que tenho dificuldade de pronunciar “no comprendo. A criança não sei, eu sentia saudades por ela, e eu nem a conheço.

- E notou que o dia inteiro assumira um comportamento masculino.

- Sim doutor.

- É muito estranho. Ajudaria lhe informar, apesar de não ser aconselhado pela junta médica do estado de Texas, que o doador do órgão era um rapaz de origem latina de 21 anos que perdera a sua vida num acidente de automóvel?

Mary sente uma confusão em sua mente e permanece em frente ao Dr. Rudolph sem dizer nenhuma palavra por alguns minutos.

- Senhorita Higgins. Senhorita Higgins, está bem?

- Sim, bem, não... Não sei doutor. Estou mais que confusa. Já tinha o problema de achar que estava tomando a vida de uma outra pessoa. E agora, esta coisa de começar a me comportar como um jovem hispânico... Já é demais para o meu coração, que aliás nem é meu.

Mal balbuciando as últimas palavras, Mary desfalece no consultório de Dr. Rudolph. Seus sinais vitais são medidos e ela é levada ao ambulatório.

*****

- Dr. Rudolph?!? O que houve?

- Você desmaiou, pois era emoção em excesso para o seu frágil estado. Mas o corpo está bem, nada a temer. Foi mais uma coisa emocional.

- O que está acontecendo comigo doutor?

- Ficará uns dias em repouso e em observação. Acho que a senhorita ainda não está pronta para voltar ao trabalho. Está sofrendo de estresse mental.

Dr. Rudolph evita tocar nas palavras alucinação ou esquizofrenia por ética médica. Para ele, Mary estaria inventando comportamentos. Mas uma dúvida pairava no ar para o Dr. Rudolph. Por que Dallas Cowboys? Como ela adivinhara que o doador era de origem hispânica? Porque sentiria saudades por uma criança que nem conhece? Receita neurolépticos para a paciente e leva a sua ficha para casa. Em sua residência, resolve ligar para a casa dos pais do doador de coração. Passa alguns minutos falando sobre o transplante e evita compartilhar informações, sobre o estado das últimas horas de Mary Higgins. Leva a conversa a cabo, dizendo ser uma chamada rotineira e como se não tivesse nenhum interesse faz a seguinte pergunta:

- E Armando, que time ele torcia?

- Ele era fanático pelo Dallas Cowboys.

- Que bom, estão quase conquistando o campeonato este ano. Será em memória de Armando. Ah, mais uma coisa, conhece alguma criança chamada Desirée?

- Não Dr. Grass não conheço, é algo importante?

- Não, não. Até logo senhora Martínez.

*****

Enquanto isto no hospital, Mary remexe-se para achar uma posição confortável na dura cama. São às três da manhã e Mary sente vontade de urinar. Com os pés descalços, alcança o corredor e procura por um banheiro. Novamente ela se sente desconfortável quando pensa que deveria estar urinando em pé. Retorna cambaleando para o seu quarto. Sente frio nos pés.

Deita-se na cama e se enrola no cobertor em posição fetal de modo a esquentar os seus pés. Resolve esquecer a razão de sua internação e tenta atingir um sono confortador que a alienasse de suas preocupações recentes.

Começa a sonhar com uma festa. Para o pânico de Mary, é uma festa latina. Tem em sua frente uma Piña Colada. Ela resolve bebericar brincando com os canudos. Um jovem rapaz no fundo do salão lhe chama a atenção. Mary se levanta da mesa e vai procurar o rapaz. Ao se aproximar do jovem rapaz, o mesmo diz com um sorriso no rosto:

- Soy yo quien está en su corazón.

Mary acorda abruptamente. Sabe que tudo isto não passa de um sonho. Mexe-se na cama, liga o televisor do quarto. Passa por alguns canais, e cai no sono enquanto assiste o noticiário. Mas retoma o sonho, encontrando o mesmo rapaz que reclama a Mary:

- Tenemos que compartillar un mismo cuerpo, yo tenía tantas cosas para hacer en la vida. Dáme este gustito?

- Que gostinho? - Pergunta Mary curiosa.

- Hacer cosas que necesitaba hacer en vida.

- Mas quem é você?

- Yo te dije. Soy yo quien está en su corazón!

- Você é o dono do coração!

- Sí, y necesito de tu ayuda!

- Diga, o que eu posso fazer por você?

- Yo tengo una hija. Tuve en un relacionamiento no aprobado por mis padres. La chica se quedó embarazada y no me avisó. Tuvo la hija sóla. Por tragédia, la chica se murió. Como yo no había reconocido mí hija, la llevaram a un huerfanato.

- E o que posso fazer neste caso?

- Mí hija se llama Desirée. Yo quiero que ella salga do huerfanato y vaya vivír con mís padres.

*****

- Boa tarde. Meu nome é Mary Higgins e necessito de uma informação.

- Sim senhorita?

- Por acaso, se encontra neste orfanato, uma menina chamada Desirée, filha de Armando Martinez?

- Sim, Desirée é uma das crianças mais queridas do orfanato.

- Pois Armando faleceu e o seu último desejo, era de que a Desirée morasse com os seus avós.

- Está esta vontade dele em algum testamento?

- Não, foi morte repentina, e não havia nenhum testamento.

- A senhorita é da família?

- Sim e não. É complicado, mas devo dizer que esta é a vontade de Armando.

*****

- Senhorita Higgins, quer dizer que tem tido comunicação com o falecido Armando, que deseja que a filha esteja na casa dos avós.

- Exatamente.

- Olha. Se não fosse pela exatidão das informações que você possui, sobre os gostos de Armando, o time que ele torcia, e sabemos que ele realmente tem uma filha chamada Desirée...

- Sim, doutor...

- A ciência não pode explicar como você obteve todas estas informações, sem ter se comunicado com a família.

- Eu também estou estarrecida doutor...

- Falei com a família Martinez, e eles estão providenciando a transferência da Desirée para a casa deles.

- Uma maravilha.

- Apesar de curioso e digamos de uma certa forma, maravilhoso o caso, não acho que a senhorita deva dar muito caso para as comunicações que diz ter tido com o falecido dono do coração.

- Mas eu não posso evitar.

- Sim, mas evite concretizar, tomar ações baseadas na conversa que tenha com o Armando. Não sabemos exatamente com o que estamos lidando.

- Sim senhor.

- Compreenda senhorita Higgins, é para o seu bem.

*****

Passados cinco anos, Mary e Desirée estão no estádio assistindo a uma partida de Dallas Cowboy.

- Vamos ser campeões, Mary!!

- Isso mesmo Desirée!!

- Papai está contente?

- Ele está me dizendo que está muito contente!!

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