quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Contos - O Porta-Jóias de Valáquia

O PORTA-JÓIAS DE VALÁQUIA

Era meio-dia. Enquanto estava pensando o que almoçar, Rashid estava na entrada da sua loja de antiguidades, na cidade de Samarcanda (atual Uzbequistão), arrumando os artigos para venda nos mostradores.

Enquanto alinhava as peças em exposição, notou um homem se aproximando à sua loja. Era um homem alto, esbelto, magro, já de idade. Arrumando o seu turbante, Rashid cumprimentou o estranho que retornando a sua gentileza, estendeu a sua mão.

- Prazer meu jovem. Meu nome é Ibrahim. Você compra artigos antigos, suponho?

- Sim senhor, prazer, Rashid. – Observando melhor o estranho, percebeu o vendedor, que o mesmo trazia consigo sob os seus braços, uma caixinha de metal. – Como lhe posso ser útil?

- Tenho comigo aqui, um pequeno porta-jóias otomano. Está na minha família há mais de três gerações.

- Com licença. Deixe-me ver. Otomano... Parece algo cristão...

- Conheces bem meu caro rapaz, como era mesmo o seu nome?

- Rashid, senhor.

- Bem Rashid. Esta caixa de jóias foi um presente que o meu bisavô ganhou do Sultão Mehmed II. O Sultão Mehmed II foi o homem que tentou invadir a Transilvânia em vão. Da frustrada campanha contra os valáquios (atual romenos), trouxe de volta somente um ourives cristão, que confeccionou este porta-jóias...

- Portanto, é otomano, mas é valáquio. É um ourives cristão tentando criar formas islâmicas em seu trabalho. Que interessante.

- Exatamente. Muito raro no império, principalmente depois que os senhores de guerra não mais tomaram interesse, em expandir o poderio otomano Europa adentro.

- E o senhor gostaria de vendê-lo.

- Não gostaria, por razões que não posso lhe confidenciar agora. Mas devo me desfazer da peça.

- Ora, todos precisamos de dinheiro, meu senhor. Mas posso muito bem lhe pagar três moedas de prata, de acordo com o peso da prata do porta-jóias.

- Mui bem rapaz. Você me ofereceu o melhor preço. Ninguém se importa pela raridade.

- Sinto muito senhor. É tudo que eu posso lhe arranjar. As pessoas da cidade não saberiam apreciar o seu valor nato, e portanto não posso lhe pagar pela raridade da peça.

- Pois bem.

Rashid entrega as três moedas de prata. Observa atentamente a peça em prata. A tampa era decorada com o baixo-relevo de dragão entrelaçado entre vinhas. Ao erguer o rosto para perguntar sobre o desenho do dragão a Ibrahim, não encontrara mais ninguém em sua frente. O senhor de idade já tinha desaparecido sem deixar nenhum rastro.

Como gostara do porta-jóias, Rashid resolve ficar com a peça para consigo. Resolve trocar o velho caixa da loja pela nova aquisição.

- Mehmet meu irmão, coloque todo o dinheiro do caixa neste porta-jóias. Nos trará sorte. Vem de muito longe.

*****

No dia seguinte, Rashid abre a loja, arruma e expõe as antiguidades para a venda, varre a calçada e entra na loja para tomar um chá.

Enquanto fazia a contabilidade do mês, abre o porta-jóias para conferir o caixa. Para sua surpresa, na contagem das moedas, Rashid constatou que havia o triplo de moedas no caixa.

- Mehmet meu irmão, você colocou algum dinheiro no porta-jóias?

- Não Rashid. Só coloquei as moedas de ontem. O resto está guardado no quarto dos fundos, no cofre.

- Então como explica que temos três vezes mais moedas no porta-jóias? Deve haver algum engano.

- Você deveria estar preocupado se houvesse menos moedas, meu irmão Rashid.

*****

No dia seguinte, Rashid faz a mesma rotina de abertura da loja, e verifica o saldo do caixa.

- Mehmet meu irmão. Que brincadeira é essa? Você colocou moedas de novo no porta-jóias!

- Não Rashid. Pode contar o dinheiro no cofre. Não mexi em nenhuma moeda.

- Como assim? Só pode ser você! Não fui eu, e a única pessoa que mexe no caixa é você!

- Quanto a mais tem no caixa?

- Três vezes mais que ontem.

- Você acha que eu estaria polindo prata velha nesta loja escura com todo este dinheiro? Você sabe que eu sei muito bem, como gastar mal o dinheiro.

- Então quem colocou? Não só hoje, mas também ontem.

- Fique contente meu irmão. É dinheiro. E dinheiro a mais, nunca fez mal.

- Vá contar o dinheiro no cofre, Mehmet.

*****

- Só pode ser o porta-jóias! Estamos ricos! Quanto você falou que tinha no cofre, Mehmet?

- Três vezes mais em relação à última contagem.

- Não pode ser! Estou sonhando!! Tinha mesmo algo de estranho naquele senhor. Tinha jeito de dervixe.

- Dervixe ou não, pelo jeito não era muito inteligente. Abrir mão de uma coisa tão valiosa!! Rashid, estamos ricos!

- Conte de novo as moedas no porta-jóias Mehmet.

Mehmet revirou as moedas sobre uma toalha e as contou novamente. As mesmas tinham se triplicado novamente. Ao esvaziar a caixa, Mehmet notou que o fundo era forrado com um veludo que estava se descolando.

Com a intenção de querer arrumar o veludo, acabou retirando o fundo. Mehmet então percebeu que sob o fundo de veludo, havia uma inscrição no corpo, cunhada em prata.

- Veja Rashid, há uma coisa escrita no fundo do porta-jóias. Está em árabe clássico. Venha ver.

- Deixe-me ver. Diz: “Riquezas e bons augúrios terá o dono deste porta-jóias. Em troca, a sua juventude será exaurida, se o porta-jóias não for devolvido às terras da Transilvânia. O porta-jóias deverá ser colocado sobre o túmulo da Senhora dos Rios. Para aqueles que não puderem empreender a jornada, devem entregar a jóia para alguém que a consiga.”

- Transilvânia? Onde fica isto Rashid?

- Fica à oeste do Império Otomano, na fronteira da Europa. É muito longe de Samarcanda.

- Veja Rashid, você está com os cabelos brancos. Parece que envelheceu vinte anos! Está perdendo a idade, exatamente como diz a inscrição no porta-jóias!!

- O quê?! - Rashid corre para o espelho. – Todos os meus cabelos estão brancos! Eu sabia que tinha algo de estranho naquele senhor! Deve ter desfrutado dos poderes do porta-jóias e passou a maldição para mim!

- Mas ela não diz, que quem não pode fazer a viagem, deve passar para quem possa?

- É isso que aquele velho fez! E não deve ser nenhum velho! Ficou velho aproveitando-se do poder do porta-jóias! Rápido Mehmet, venda esta maldição para os mercadores da Rota da Seda que com certeza passarão pela Transilvânia!

Mehmet saiu correndo em direção ao mercado da cidade, em encontro com os mercadores da Rota da Seda.

*****

Passaram-se seis anos e Mehmet nunca mais havia regressado do mercado. Rashid pensava todos os dias no irmão que desaparecera.

Um dia, ao abrir a loja, encontrou um senhor de idade deitado na porta da loja.

- Senhor, levante-se. Está muito frio o piso, lhe fará mal, ainda mais com a idade que possui.

- Sou eu, Rashid... Me ajude...

- Como? O senhor precisa de alguma coisa? Como sabe o meu nome?

- Não me reconhece? Sou o seu irmão, Mehmet!

- Mehmet! Você envelheceu tanto! O que aconteceu com você?

- Eu ia levar o porta-jóias para o mercado, mas decidi ficar com ele. E agora estou pagando pela minha tolice...

- Mas para onde você foi durante todo este tempo?

- Fui para Bagdá e tive uma vida de sultão. Tive um grande harém, escravos e muitos camelos. Mas a minha vida está se acabando.

- Seu tolo! Desapareceu sem dizer nada, deixando a sua família em agonia, e agora que fez a sua besteira, quer a ajuda!

- Por favor Rashid, me ajude!

- Nem morto! Quem mandou se afogar na cobiça?

- Lhe peço Rashid, em nome de Alá!

- E nessas horas você invoca o nome do Grande Senhor. Era só passar para frente a maldição!

- Sim eu passei para frente o porta-jóias...

- E não funcionou?

- Não. Você não entende. Você não leu toda a inscrição no fundo da caixa.

- Claro que li, você estava aqui Mehmet! Como você é tolo!

- Você não tinha arrancado o fundo todo. Havia mais coisa escrita.

- E o que dizia?

- Diz que o décimo-terceiro dono deve pessoalmente devolver o porta-jóias para a Transilvânia. Diz também que a cidade do décimo-terceiro dono seria saqueada.

- E por acaso você é o décimo-terceiro?

- Sim sou. Passei o porta-jóias para um mercador que estava passando por lá, mas a maldição não foi transferida, e nem a multiplicação das moedas. O tempo foi passando, e um dia Bagdá foi saqueada, invadiram a minha casa e levaram tudo.

- Eu acho bem merecido. Às vezes não acredito que a gente vem de um mesmo ventre.

- Faça alguma coisa, Rashid meu irmão, estou morrendo!

- Juro pelo túmulo do nosso falecido pai que não irei te ajudar. Gozou, aproveitou do bom e do melhor sozinho, e agora que agoniza...

- A nossa mãe nunca irá te perdoar se você me deixar morrer de velhice...

- Agora pensa na mãe. Ora pois, só faltava essa!!

*****

Após uma noite de insônia e de remorsos, Rashid resolve levar o seu irmão Mehmet para a Transilvânia. Mehmet está tão velho e fraco que não consegue montar sozinho um cavalo. Rashid resolve levar o seu irmão na garupa do seu cavalo tártaro.

Com as moedas que se multiplicavam no porta-jóias, os dois não tiveram nenhuma dificuldade para alcançar a capital Istambul. Chegando à capital, foram os dois informados que necessitariam de uma permissão especial para cruzar a fronteira ocidental com a Valáquia.

Marcaram uma audiência com o Sultão, para que lhe fosse explicado o motivo da viagem.

- Senhor Sultão, o motivo da nossa viagem para as terras da Transilvânia é de estabelecer relações comerciais com esta terra – disse Rashid.

- Não entendo. É uma terra perigosa, e os valáquios são famosos por empalarem otomanos. Vocês querem ser empalados vivos?

- Majestade, traremos benefícios nunca vistos na corte de Istambul.

- Parece que vocês possuem segundas intenções. Expliquem-me já realmente o que deseja fazer na Valáquia, ou mandarei empalá-los aqui mesmo. O que um velho e um rapaz de Samarcanda querem haver com a Valáquia? Não entendem que é uma fronteira em pé de guerra?

Rashid tenta em vão inventar razões para entrar na Valáquia. O Sultão se torna cada vez mais irritado com as mentiras de Rashid.

- Guardas, levem os dois para o calabouço!

- Espere, eu direi a verdade! – exclama desesperadamente Rashid.

*****

Ao demonstrar que realmente o porta-jóias era capaz de triplicar as moedas, o Sultão finalmente passa a acreditar na história dos dois irmãos.

- Então vocês são irmãos!?! – observa estarrecido o Sultão. Eu pensei que o velho era o seu avô!

- Sim, senhor. Não sabíamos como lhe contar a nossa história, sem cair em descrédito.

- Acredito sim! Mas não penso que vocês irão seguir para a Transilvânia!! – retruca o Sultão.

- Mas o meu irão irá falecer! – exclama Rashid.

- Sim, mas por uma boa causa. Irá triplicar as reservas do Império Otomano. Seu irmão fica conosco triplicando as reservas, enquanto você, pela sua impertinência, vai passar o resto dos dias no calabouço! Guardas, levem-no!

- Espere, não faça isso, a Istambul será saqueada pela maldição do porta-jóias!! – tenta desesperadamente Rashid mudar a opinião do Sultão.

*****

Rashid é jogado ao calabouço, após sofrer torturas e agressões. Todo ensangüentado, Rashid tenta encontrar uma posição confortável no chão do calabouço, de modo que os ferimentos causados pela surra levada não o incomodassem.

- O que vou fazer agora!? Meu irmão irá morrer e a cidade será saqueada pela maldição! Tudo isto pela cobiça dos homens! – Grita sozinho Rashid, como se estivesse com a esperança que um ouvido sensato, escutasse as suas lamentações.

*****

Três meses mais tarde, com Istambul três vezes mais rica, a prosperidade da cidade atrai saqueadores e a capital se encontra em estado de sítio.

Rashid tinha sido esquecido pelo Sultão no calabouço. A porta do calabouço se abre, deixando passar um feixe de luz. Rashid tenta ver as silhuetas na porta, mas não consegue, pois a sua visão estava prejudicada por três meses de escuridão total no calabouço.

- Venha rapaz! Você estava certo. A maldição realmente existe. Istambul está sendo saqueada. Os inimigos estão cercando o palácio. Quero que você leve o seu irmão para a Transilvânia. – Diz o Sultão todo alvoroçado.

*****

Rashid leva o seu irmão Mehmet até a tumba da Senhora dos Rios e coloca o maldito porta-jóias sobre a lápide. Num passe de mágica, Mehmet recobre a sua juventude e ambos os irmãos se abraçam em lágrimas.

- Nunca mais Rashid, nunca mais.

- Foi muito cara a lição Mehmet. Muito cara.

*****

Anos mais tarde, três ladrões de covas entram furtivamente no mausoléu da Senhora dos Rios, e encontram o porta-jóias sobre a lápide. O líder do bando pega o porta-jóias, e coloca-o em sua bolsa.

- Creio que achei o famoso porta-jóias da Senhora dos Rios!

Recomeça assim a maldição por entre outras mãos incautas, mas até aí, é uma outra história.

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